
A média de tempo para que um novo remédio ou procedimento seja oferecido pela rede pública é cerca de três vezes maior do que o prazo máximo que consta na lei. A legislação garante o acesso a novos tratamentos em até 180 dias após a sua incorporação; no entanto, segundo levantamento realizado pela Folha, ao menos 64 medicamentos e procedimentos já incorporados ao SUS desde 2018 ainda não são oferecidos regularmente.
Outro levantamento recente, divulgado por Futuro da Saúde, aponta que 49,9% dos medicamentos incorporados ao SUS entre 2022 e 2023 não estão disponíveis à população. Eles representam 23 dos 47 tratamentos incorporados no período para diversas doenças, como esclerose múltipla, câncer de mama e osteoporose.
Entenda o problema
A insulina análoga de ação prolongada, utilizada no tratamento de diabetes tipo 1, foi incorporada ao SUS (Sistema Único de Saúde) em 2019. De acordo com a lei, o medicamento deveria estar disponível para os pacientes do SUS em até 180 dias após essa incorporação (ou aprovação). Apesar disso, passados mais de 2.000 dias, o tratamento ainda não é oferecido na rede pública.
Situação parecida ocorre com o VNS, ou estimulador do nervo vago. Em 2018, o Ministério da Saúde anunciou a incorporação da terapia de estimulação do nervo vago (VNS) ao Sistema Único de Saúde (SUS), um tratamento considerado eficaz e seguro para casos graves de epilepsia resistente a medicamentos que deveria estar disponível na rede pública em março de 2019.
O VNS é um tratamento indicado para alguns casos de epilepsia de difícil controle, isto é, situações em que os medicamentos não têm o efeito desejado, e em que não é possível realizar uma cirurgia. Com isso, o VNS pode ser a única alternativa de tratamento viável. Apesar disso, quem precisa desse tratamento, ainda precisa recorrer à justiça para conseguir acesso, já que os hospitais do SUS ainda não estão preparados para atender essa demanda.
Segundo um levantamento da Folha, esses não são casos isolados: atualmente, o Ministério da Saúde ainda não oferece ao menos 76 itens já incorporados ao sistema público de saúde, dos quais 64 já extrapolaram o prazo de 180 dias. A lista inclui medicamentos contra câncer, diabetes, hepatites, doenças ginecológicas, além de exames, testes e implantes.
Foram identificados 242 medicamentos e procedimentos incorporados ao SUS entre 2018 e 2024, sendo 31,4% (76) ainda não ofertados pela rede pública. Ainda segundo levantamento da Folha, esses 76 itens acumulam uma média de 648 dias sem serem disponibilizados pelo SUS, mais de três vezes o prazo previsto em lei (180 dias).
Os principais motivos para essa demora incluem:
- Falta de assinatura de contrato com a farmacêutica;
- Necessidade de atualização ou criação de protocolos de uso das tecnologias;
- Pendência de aprovação na CIT (Comissão Intergestores Tripartite), composta por representantes da União, dos estados e dos municípios.
Como funciona a incorporação de novos tratamentos no SUS
A incorporação de um novo medicamento ou procedimento ao Sistema Único de Saúde (SUS) envolve diversas etapas. O primeiro passo é a solicitação à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), apresentada por farmacêuticas, profissionais de saúde ou outros interessados. É obrigatório que a tecnologia tenha sido previamente aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que verifica sua segurança e eficácia.
A Conitec, então, realiza uma análise técnica, considerando evidências científicas, eficácia, segurança, custo-benefício e o impacto orçamentário. Após essa análise, é emitido um parecer que é submetido a uma consulta pública, para permitir a participação da sociedade no processo.
Com o parecer técnico, a decisão final é encaminhada ao Ministério da Saúde, mais especificamente ao secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde, que atualmente é representado por Carlos Gadelha.
O secretário é responsável por assinar a portaria que oficializa a incorporação ou rejeição da tecnologia ao SUS. Essa portaria, após publicada, define as bases para que o medicamento ou procedimento seja integrado à rede pública.
Após a publicação da portaria, as áreas técnicas do SUS têm até 180 dias para disponibilizar o medicamento ou procedimento à população. Esse processo inclui a aprovação pela Comissão Intergestora Tripartite (CIT), que coordena a implementação entre os diferentes níveis de gestão (federal, estadual e municipal). Em casos justificados, o prazo pode ser prorrogado por mais 90 dias, mas, atrasos são frequentes, comprometendo o acesso dos pacientes às tecnologias já aprovadas.
Entenda as consequências
A demora do SUS em oferecer tratamentos já incorporados afeta gravemente a saúde de pacientes que dependem exclusivamente da rede pública. Muitas vezes, o acesso a medicamentos e procedimentos essenciais, como tratamentos oncológicos ou fórmulas nutricionais para crianças com alergia à proteína do leite de vaca, não ocorre no prazo legal de 180 dias, forçando pacientes a buscar alternativas urgentes.
A judicialização tem se tornado uma das principais ferramentas para garantir o acesso a esses tratamentos. Por meio de ações judiciais, é possível exigir que o SUS forneça os medicamentos ou procedimentos necessários, evitando atrasos que podem comprometer a vida e a qualidade de saúde dos pacientes. Nesse contexto, o advogado especializado em direito à saúde desempenha um papel essencial, orientando os pacientes, reunindo provas e atuando para assegurar que seus direitos sejam cumpridos.
Sem a intervenção jurídica, muitos pacientes enfrentam um caminho ainda mais difícil, recorrendo a vaquinhas online ou outras formas de arrecadação que, muitas vezes, não chegam a tempo. A atuação do advogado, portanto, é indispensável para evitar que atrasos no sistema público resultem em consequências irreparáveis, como a perda de vidas.
Tratamentos incorporados porém indisponíveis
A seguir estão apenas alguns dos exemplos de medicamentos ou procedimentos que já foram devidamente incorporados ao SUS, mas que ainda não são oferecidos regularmente pela rede pública:
- A insulina análoga de ação prolongada, indicada para o tratamento da diabetes tipo 1, incorporada em 2018;
- VNS, ou estimulador do nervo vago, indicado para o tratamento de epilepsia refratária ou de difícil controle, sem indicação cirúrgica, incorporado em 2018;
- Zolgensma (Onasemnogeno abeparvoveque), considerado um dos medicamentos mais caros do mundo, indicado para pacientes com AME (atrofia muscular espinhal), incorporada em 2022;
- Fórmulas nutricionais para bebês e crianças com APLV (alergia à proteína do leite de vaca);
- Kadcyla (Trastuzumabe entansina), medicamento para câncer de mama, aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2019 e, mesmo após a incorporação da Conitec, ainda não está disponível no SUS;
- Cladribina oral, uma terapia não infusional para pacientes com esclerose múltipla remitente recorrente altamente ativa, doença degenerativa grave que afeta o funcionamento do corpo humano.
Vale lembrar que o direito à saúde está na Constituição e garante a todas as pessoas o acesso ao tratamento necessário, e que é papel do advogado da saúde lutar por esse acesso.